A Corda Ortográfica
o www [ponto] agora é da família
o alfabeto qualquer dia vira half-bite
globalizado e triunfante deu um passo
harmonia entre povos, na manhã do acordo
afinal porque lançar âncoras
eliminando a existência do navegar?
e a língua escorre pelas gerações
líquida, clara e simples, irregular
mas as crianças mais espertas
há décadas já sabiam
pôr ordem nas letrinhas
somando as outras que inexistiam
salvaram-se agora os wellingtons
maykos e oswaldos
cobertos pela velha manta
da indiana e alfabética fila de letras
novas caras e também menos pontos
dois pontinhos horizontais em cima
tá tranquilo, vai ficar frequente
e até linguiça perdeu o tempero
cai o trema e manja só o tremelique
na munheca da velha tia zumira
ela que adora descontar mei’ponto
da pontuação de quem já pouco tira
lá na alemanha sim se usa muito
mas aqui, só ficou pra müller
nome que desaconselho
embora sem o trema, melhor
só que mudar a cara da palavra
é maquiar o sentido
passar batom no tom
ou despistar o olho, que passa batido
quiseram tirar os acentos
e quiseram acabar com tudo
a nossa língua, a nossa língua
ficou mais clara ou opaca?
que nada, que nada
comunica bem
como ninguém, é rica
mas veja só se não implica:
tenha só a ideia
de que boia, asteroide
coreia, veja só...
joia, jiboia, plateia
apoio, heroico e europeia
tudo isso já ficou sem nada
na cabeça do ditongo aberto
das paroxítonas,
penúltimas firmes e fortes
logo na regra de acentuação
eles foram mexer e remexer
só porque nos tempos da escola
essa é das mais difíceis de aprender
o acento depois de ditongos
quando era em ‘i’ ou ‘u’
sumiu também
e nem conseguiu fazer a feiura
ficar menos feia
e deixaram triste o chapeuzinho do vovô
deixando o voo tão menos aéreo
e os que creem tão sem tetos
como os que preveem tão sem mira
agora menos circunflexo, menos complexo
creio que tampouco faz mal
mas ninguém me convence é do diacho
da remoção do acento diferencial
ele já me parecia estabelecido
sempre fez toda diferença
entre paras e pelos e polos
o pôr do sol continua com sombrinha
e o pôde não puderam podar
a fôrma não entrou em forma, virou exceção
uns acentos diferenciam mais que outros
no julgo dessa legislação
muita coisa vai ficar no papo
afinal, leis iguais são difusas
em países diferentes
mesmo com língua comum ou confusa
podem até argumentar oposto
mas arguir vai se extinguir sem trema
e se argui, favor que averigue
lavou a língua? agora que enxague
economia de traços atravancando
a bendita semântica dos cardápios
dificultando tudo e alimentando
nerds sem vida vigiando os erros
sem linguística, sem lógica e sem lugar
intelectualidade furada, afinal
num é bem assim que se lida com ela
a língua escrita é tão bela, aceitai
mas pra que ser tirano?
é passível de erro qualquer um
quiprocó de possível engano do hífen
mediador de justapostas comum
às vezes, de fininho vai o hífen
e o autorretrato fica desigual
imagem de palavra nova
tipo minissaia, ultrassom ou antissocial
mas quando tem h, com que se grafa hífen
usa hífen seja como for
anti-herói ou sub-humano
e também não se chocam
as vogais iguais
sendo assim, hífen
peça do micro-ondas
e de outras mais
só que nem tudo é simples
e depende do prefixo
quase que nem me arrisco
a lista é longa demais
obsoletos, ficamos todos juntos
cabe ao jovem ser mais assaz
compreender a regra e expandir a língua
decorar perfeitamente acentos e sinais
de tudo se faz muito alarde
mas no fundo a portuguesa é igual
continuando pondo a farta mesa
e vestindo o velho avental
perdido do castelhano
e aprovado em cada carnaval
nosso ódio eterno da gramática
mas nossas rimas cobertas de sal
quero que esse acordo faça efeito
que a poesia saia do quintal
na corda bamba da ortografia
cabo verde, angola e portugal
ninguém precisa reaprender a língua
ou degolar na corda do gramatical
quem a usa sabe ou desconfia
que a cultura vive no imortal
dentro de nós a certeza plena
certa tez de convicção
do nunca desamparo da letra
e comunicação
ligar dois pontos na mensagem
mais do que lei, regra ou cortesia
é preciso sensibilidade na bagagem
e uma língua sem anestesia
anistia pro corpo e mente
linguagem é alma
prática e inexplicável
indomável.