Dois Corpos e Uma Verdade: Qual?

Era um típico menino burguês que sofria de sobrepeso e se pendurava pelas pernas tortas de tanto se agüentar em pé. Nem ele sabia quantos anos tinha, pois fazia aniversário semanalmente. Brinquedos e mais gorduras saturadas eram parte da festa. Festanças comemoradas, às vezes, a sós – com um enorme pacote de biscoitos da sorte. Mas tinha tão pouca sorte, aquele filho da puta de menino. E ainda pequeno mal sabia falar enquanto já falava demais. Eram peripécias de um QI sobrenatural que caira sobre aquela criança mimada.

E Joãozinho crescia desaforado e por muito tempo teve que cuidar do colesterol. Tanto bife tive que grelhar, porque fritura era impróprio no almoço. No jantar podia se não ele mal jantava. Já ia pra escola sozinho e voltava sozinho e vivia sozinho e me pedia comida. Era um estúpido que falava coisas fantásticas sobre o mundo a fora, mas não sabia falar. Com apenas quinze anos e com quarenta quilos a menos, João virou acadêmico. Me explicaram que isso significa estudar para atingir o nível superior. Ele quer ser alto, agora que é quase magro, aos dezenove.

Há muito já desconfiava que ele era viado. E agora só podia ser chamado João Pedro. Já com mestrado em mãos, ele acudiu o falecimento dos pais. E foi morar em Paris com a herança, para arriscar um doutorado para o fim do ano que vem. Agora me dá ordens em francês e não gosta quando digo que não entendo. Me pede como à sua mãe mas me recompensa como uma escrava. Diz ele que é lido pelo mundo todo, mas eu não acredito. Continua hoje, aos trinta e cinco, usando a mesma cueca dos vinte e quatro. “Foi mamãe quem deu”, repete orgulhoso. E ai de mim se não passar do jeito certo. Ele é um verdadeiro doutor de merda. Tenho certeza que um desse na favela morria X9.

"Me peguei pensando outro dia na possibilidade de voltar para o Brasil", tive coragem de dizer. Uma gargalhada alta aberta sincera ímpia e ácida foi a minha resposta. Casou com uma mulher linda, mais linda do que toda beleza do patrimônio e do sucesso. E eu estava presa arruinada no delírio dos outros. Sendo obrigada a ver o paraíso através da ótica da sujeira. Há trinta anos eu lavo banheiros e passo cuecas, tá ouvindo seu joão? Acho que morri e o senhor esqueceu de me enterrar. A sobremesa de hoje a noite teve um tempero especial e eu, como boa emprega, comi o seu resto. Veneno. Seremos iguais daqui a no máximo cinco horas. Assinado Beth.

Quando acabou de ler a carta deixada em seu livro de cabeceira, João Pedro riu. Achou que era loucura de uma idosa carente e morrinhenta. Pior foi Beth pensando que nem na última hora a vida lhe seria justa e morreria ali sozinha, sem uma lágrima de funeral. João leu apenas oito páginas do ainda primeiro capítulo e faleceu sem ponto final. Beth morreu virgem e com tanto ódio no peito que, de câncer, reviveu.

5 comentários:

Efraim Fernandes disse...

Cara, de onde vem essas inspirações pra escrever tanta loucura e genialidade????

Yerko Herrera disse...

Legal o texto! Valeu pela visita ao Música&Poesia. Abração!

Yerko Herrera.
www.musicapoesiabrasileira.blogspot.com

Anônimo disse...

Só vc mesmo meu brother. Me amarrei no texto. Inspiração e genialidade, como disse o amigo Efraim, são para poucos e vc é um deles.

Grande Abraço!!

Dani (ela) disse...

que é isso...!

menino, me lenbrei de várias 'Marias'.

dois corpos, DUAS verdades, acho...

Pó & Teias disse...

Muito criativo teus textos, Cadu!
Essas pessoas que vivem em função de outra são mais comuns do que a lógica permite!
Vamos linkar seu blog ao nosso, ok?
Valeu!!!
RP